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sábado, 24 de dezembro de 2011

De barquinho para o Céu


             Menino baiano para o modo de ser bem educado não pode responder, nem malinar e tem que tomar a bença dos mais velhos, todinhos um por um. Na roça de Mãezinha era assim mesmo. Eu gostava de tomar a bença de todo mundo, os velhos falavam que Deus me criasse, que Deus me ajudasse, que Deus me desse juízo.  Só não gostava de ir tomar a bença da Vovó.  
Vovó era tão-tão-velha, avó de minha Vozinha, fora um dia flor de formosura, até vaidosa demais segundo as más-línguas. No retrato ela era assim mesmo. Mas eu, menino-buchudo tão miúdo, não via nada disso. Quando me entendi por gente ela já tivera  derrame, Deus-me-livre de doença braba, e tinha era tempo que ficava na cama, num quarto lá na casa de Maezinha. Toda a vez que eu ia tomar a bença só ia se me levassem porque tinha um pouco de medo. Quem é esse menino, que eu não conheço. Filho de sua bisneta, é seu tataraneto. Bença. Que Deus lhe cuide.
Depois de tempo já não perguntava nada, não levantava, não queria comer, não conhecia ninguém, fazias imundices ali mesmo na cama e Mãezinha limpava tudo e cuidava das feridas dela. Ela fazia uns barulhos de quem chorava pra dentro. Deus-me-livre.
Um dia Mamãe me disse que precisava me contar uma coisa que era de Vovó, mas não era pra eu me assustar. Vovó morreu.
Eu sabia lá direito que era morrer gente? Era assim mesmo:  quando o corpo da pessoa ficava cansado e tinha que descançar o Papai-do-Céu chamava a alma da pessoa pra ir morar com ele lá no Céu. Até perguntei a Mamãe como morava gente no Céu e não caia no chão. Isso era mistério muito e gente-não-morrida sabia disso não.
Lá no Céu Vovó seria bonitona de novo que nem no retrato, não sofreria dor e conheceria todo o mundo. Passaria os dias tocando  harpa com os anjos, hora dessa iam lhe ensinar a tocar a harpa. Quando fosse nossa vez de irmos pro Céu, que era destino de todo vivente um dia morrendo, se fizéssemos a vontade do Papai-do-Céu ( não malinarmos nem respondermos e tomarmos a bença dos mais velhos para agradá-Lo muito), a Vovó e os outros de nossa gente já estariam nos esperando e fariam uma festaça retada pra nos receber. Era só não cairmos nas tentações do Cão-Danado.
Esse negócio de ir pro Céu deve ser bom mesmo, fiquei curioso até.
Fomos pra roça, despedir-nos da Vovó que ia fazer viagem comprida, para o mundo-de-lá-além-das-tormentas, qualquer coisa assim.
Ela estava todinha de roupa branca, numa caixa de madeira bem bonitinha, cheia de flores coloridas, tinha marias-sem-vergonha de todas as cores e outras flores lindas da Caatinga. Eu pensei que essa caixa era um barquinho pra ela viajar. Tava tão ajeitada e tão esmerada que São Pedro quando visse abriria a porta do Céu na mesma da hora.
Tinha um monte de mulheres velhas com lenços nas cabeças e xales nos ombros, elas cantavam uma cantigas, todas juntinhas, tom bem ensaiadinho “o povo de Deus, era rico de nada, só tinha esperança e o pó da estrada, o povo de Deus...”, elas falavam “Ave Maria cheia de graça rogai por Ela pecadora” - não foi assim que eu aprendera errei um pouco no começo, depois fui querer aprender a ladainha também. Os brabos homens eram sérios e carrancudos e faziam cara-de-quem-não-sorria.
Mas eu não entendi uma coisa:  toda a gente grande chorava muito de tristeza, gemendo e querendo se jogar no chão. Ai, ai, ai, ela foi embora.
Eu era muito aparecido e fui pro meio da sala e disse à gente que não chorasse e contei a eles todas as coisas boas que iam acontecer com ela com Papai-do-Céu. Mamãe tinha me falado de toda a certeza,  e ela não conta palavra errada nada. Esse mundo era de Vovó mais não, só sofria, todo mundo sofria.
Acho que meu protesto não chamou atenção de ninguém, ficaram chorando.
Eu quis ir da Capela até o Cemitério que era o lugar que botavam o barquinho para Vovó viajar, ninguém deixou que era pra menino não ficar com impressão. Fiquei na casa de Mãezinha e o povo foi na procissão “mas na sua frente, alguém caminhava, também sou seu povo senhor” e iam caminhando, depois da curva vi mais nada.
Até agorinha não entendo que tanto eles choravam. Deus-os-livre de tanto sofrimento. Que Deus lhes crie, que Deus lhes ajude, que Deus lhes dê juízo.
Bença Mamãe-do-Céu, bença Papai-do-Céu, quando eu morrer, Deus me leve pro Céu.

3 comentários:

Florisvaldo disse...

Caro Salvador, como um menino buchudo criado na roça, mesmo estando hoje co 61 anos de idade, me identifiquei com todas as suas palavras, principalmente aquelas: Bença Pai, Bença Mãe, Bença Tia Vó, Bença Vô, Bença Madrinha, Bença Padrinho e Bença para TODAS AS PESSOAS MAIS VELHAS. Isto era norma.

Forte abraço,

Florisvaldo F. dos Santos
Cansanção - BA.

Hilário Francelino 98 disse...

Gostei muito professor, você é um poeta!

Izabel Rios disse...

Nossa... que bonito!
Quem dera a gente conseguisse ver mais o mundo nessa densidade poética que suaviza nossa inquieta condição humana.
Usando expressão de querido amigo meu, nordestino como tu, mas não sei se usada pelos baianos: to bege!!
Izabel