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sexta-feira, 22 de junho de 2012

Sangue

Tio Dito não deixava de ser presepeiro, bebia cachaça e ficava xarope. Toda feira tinha uma novidade. Dia desses comeu na barraca de uma mulher, repetiu, quando foi cobrado inventou que era vereador e que não ia pagar nada, levantou e deixou a coitada no prejuízo. Outra vez levou um revólver de brinquedo, comeu um sarapatel na hora de acertar a conta apresentou o brinquedo engatilhado: o pagamento é com isto!  
- Não me mate pelo amor de Deus, fica de graça para o senhor.
- Brigado, dessa vez passa.
Com a barriga farta foi beber no bar do Cigano, e esse povo sabe ser brabo quando mexem com um deles.  Bebeu uma, duas, três branquinhas. Reapresentou a arma: Vou pagar mas é com isto! O Cigano pegou uma arma de vera e botou na testa dele.
- Você quer morrer agora ou mais tarde?
Dito dá uma risada mostra as gengivas carecas -   estou brincando meu amigo, toma aqui seu pagamento, nóis semo amigo há tantos tempos, escapou bufando.
Na derradeira, chegou na barraca do filho do Pernambucano, pegou um chapéu, botou na cabeça e foi saindo como quem não queria nada. O cabra ficou azedo puxou ele pelo pescoço.  Tomou o chapéu. Dito  ainda disse uns desaforos que ninguém que testemunhou teve coragem de relatar. Parece que chamou a mãe do homem de cachorra. Sei que o homem comeu ele no sopapo.
Na hora da surra o primo Ivaldo ia passando tomou as dores de nosso tio. Podia não valer nada, mas quem quer ver o seu sangue apanhando na praça? Que está acontecendo aqui? Antes de ser respondido moeu o cabra no murro, foi surra que saiu suado, puxou Tio Dito pelos colarinhos, deixou ele em casa para modo de não criar mais confusão.
Antes do sol cair a cidade já estava cheia que Ivaldo era um homem morto. A família dos Pernambucos já tinha se armado para vingar a surra e a humilhação sofrida. Cabra não apanha na cara.
Antes da peixeira entrar em seu bucho Ivaldo se escondeu na roça. Depois se picou aqui pra casa e se acoitou até dia desses. Filhos pra criar... foi tomar as dores de Tio Dito! Mas o filho do Pernambucano estava errado também ao bater num coitado desses.
Todo mundo sabia que nossa raça estava jurada. Se não pegassem o primo Ivaldo ia começar a guerra dos Pernembucos com nossa gente, mas no meio dos nossos não tem mais feroz do que Zenildo.
Zenildo foi sozinho na casa do velho Pernambucano, tirou a cinta e deixou as armas no batente entrou sem nadinha. Não é um cabra mesmo?!
- Licença seu Pernambucano, a bença.
- Deus lhe abençoe.
- Eu vim tratar com o senhor porque seu fio jurou de matar meu primo.
 Vão chegando os filhos todos do Pernambucano, armados: um com peixeira, outro com carabina, outro com uma cartucheira. Zenildo desvalido na sala da casa.
- Que é que você quer, Zenildo? Tá querendo se juntar com seu primo?   É certo que nóis vai sangrar o Ivaldo. Parente meu não apanha na cara.
-  O senhor, seu Pernambucano,  sabe que seu fio não tem razão. Nosso tio é presepero mas é um velho coitado. Precisava seu fio dar uma surra nele? Meu primo tomou as dores do mesmo jeito que vocês tão tomando, que ninguém gosta de ver um seu apanhando na rua.
- O jeito é alimpar com sangue.
- Mas nóis não sangremos seu fio, e foi ele quem começou a peleja.
Os homens vão chegando perto, tem revolver engatilhado, carabina apontada, clec-clec, Zenildo de costas pra eles, de frente pro velho.
- Você não está se achando muito valente seu cabra?  Se crescendo no meio da sala de minha casa, aqui somos mais de dez e você é um?
Zenildo mira os olhos do velho com o olho de nem-sei-o-quê.
- Olhe seu Pernambucano, com todo o respeito, aqui nessa terra os de sua gente se contam aos dez e os nossos se contam aos mil. Se me matarem agora ou matarem meu primo não sobra um de sua raça pra contar história.
- Fio!
Chega em frente de Zenildo o filho que apanhou de Ivaldo, peixeira empunhada.
- Fio, aperte a mão de Zenildo! Sujeito homem como ele não é pra morrer sangrando em minha casa e você foi errado. Tá empatado.
 Com o olho cheio de lágrimas que não deixou escorrer o filho do Pernambucano pegou a peixeira com raiva, enfiou com toda a força na tábua da mesa. Apertou a mão de Zenildo.
Briga ficou mesmo foi pra quem não sabe fazer a paz.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Mãe Justina se despede de Lelinho

Lelinho meu filho querido espere um pouco que vou buscar uma coisa pra você levar consigo essa blusa de veludo que está aqui é pra você não passar frio na viagem nem lá na Metrópole lá faz frio de doer as juntas e a mãe não quer que você sofra nunca quis eu amo você de um jeito que acho que não amei nenhum dos filhos que pari Deus-os-livre de ouvir uma conversa dessas ainda lembro do dia em que você nasceu sua mãe era uma menina havia poucos tempos que tinha se engraçado pelo seu pai era um ronco aqueles dois que eu e seu avô apressamos o casamento ainda bem que fizemos assim que não demorou um nada pra você chegar no mundo era magrelinho feio que nem um caburé de buraco e sua mãe não dava o peito direito por que queria ficar com os peitos duros feito moça eu ralhava com ela mas pisa não podia dar mais que já era mulher casada e mãe quando você não tinha nem um ano nasceu sua irmã essa era uma belezinha gorducha que só ela você ficava admirando ela e querendo brincar você queria um bem danado a ela mas na primeira disenteria que teve sua mãe não soube cuidar deu leite cru pra bichinha e terminou de matar ela foi mesmo sua mãe terminou de matar sua irmã e foi por isso que eu trouxe você pra se criar comigo quem já tinha criado seis filhos próprios contando com a irresponsável de sua mãe e outros tantos das raparigas que seu avô arrumou por aí bem podia criar mais um meus outros filhos já tinham se criado e caído no mundo minha casa estava vazia e você danadinho com esse seu jeito arteiro danado que só um gato do mato tomou o lugar na minha casa e no meu coração tão pequeno aprendeu a me chamar de mãe logo cedo por derradeiro aprendeu a conhecer sua mãe de sangue chegou aqui magrelo só bebia garapa na casa de sua mãe que não lhe preparava um mingau criei você com tudo de bom que tive ao meu alcance até fui muito mole com você às vezes devia ter sido mais severa quando você pulava o muro da escola pra ir jogar baralho com os moleques mas você com essa sua risadinha sem vergonha seu Lelinho sempre me deixou desarmada minha maior alegria foi ter podido te dar sua bicicleta nunca pude dar um brinquedo a meus filhos mas a você consegui dar e você ficava em riba dela o dia todinho até de noite mostrando os dentes por aí sabe que eu ficava muito alegre por dentro também de ver sua risada só não ria por que as amarguras da vida as outras coisas já secaram meus sorrisos e minhas lágrimas agora você está aí para sair de casa saindo do ninho pra ir pra cidade grande ir buscar seu destino fica o mesmo vazio na casa e na minha vida de antes de você chegar seu danado leve essa blusa de veludo pra você se esquentar e leve no seu coração as coisas que essa velha mãe Justina tentou ensinar Lelinho não se misture com pessoas ruins que você é inocente demais ameninado você sabe que quem anda com porcos farelo come siga sua consciência se algum amigo chamar você para fazer coisas erradas lembre de que ele não é seu amigo saia dele pegue seu rumo e não pule os muros nem da escola nem do trabalho é tempo de você ser um homem de responsabilidade vá com Deus meu filho que Ele livre você dos maus caminhos das más companhias e de todo tipo de sofrimento que Deus lhe abençoe volte aqui dê mais um abraço quero sentir seu abraço filho que sua mãe velha não sabe se vê você ainda quem sabe no dia em que você voltar eu já não esteja mais viva quem sabe abraço quente demorado apertado apartado.