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quinta-feira, 26 de abril de 2012

Como se fosse da família


- Eu vi suas trouxas arrumadas lá na cozinha. Posso saber de que se trata?
- Eu vou me embora pra São Paulo mais meu amor e vai ser para a semana.
- Como é que é?
- Isso mesmo, Dona. Semana que vem me pico daqui. Sabe, descobri dia desses que vou ter um menino. Meu amor tem emprego apalavrado em São Paulo, tudo certinho. E isso aqui não é vida para mim mais não.
- Não acredito. Você é uma ingrata mesmo. Ingrata!
- Que?
- Olhe, Fulana, fui em quem acabou de lhe criar. Quando eu lhe trouxe aqui para casa você tinha nove anos. Peguei você na casa de seu pai no meio daquela miséria, quase morta de fome e lhe abriguei em meu lar. Dei comida, dei tudo. Não fosse por mim uma hora dessas você já teria morrido de fome por esse mundo. Mas é assim. Mulher de sua laia não pode ver homem. Do primeiro que achou já arranjou barriga. Nunca deixou de ser gentinha.
- Dona, não me trate desse jeito que não lhe dei ousadia!
- Ousadia? Quem é você para falar em ousadia comigo, sua sirigaita! Pensa que não sei que você e meu menino se atracavam feito bichos do mato quando eu e meu marido íamos dormir. Sempre desfrutável.
- Quer dizer que a Dona sabia e nunca fez nada? Eu era menina-moça , foi ele que foi mexer comigo. Eu tinha onze anos, nem regra eu tinha.
- Você deu o que deu porque quis.
- Ele me adulava com os doces e as comidas boas que só ele podia comer, me prometia que ia fazer um negócio que não doía e eu não podia contar pra ninguém. Eu não sabia nem o que era isso. Ele ia me bolinar lá no meu quartinho.
- Ele era um menino.
- Ele já era de maior, tinha bem uns vinte.
- Você sempre foi oferecida. Ficava limpando o chão de roupinha curta se insinuando.
- Eu não sabia nem o que era aquilo!
- Lembro do tempo que vocês ficavam de segredinhos pela casa? Você olhava para ele com o olhar todo enviesado  na hora de servir o jantar.
- Uma hora me apaixonei por ele, quando entendi o que a gente fazia. Já tinha uns quinze anos. Eu quis ele pra mim.
- O que? Você enlouqueceu? Querer meu filho pra você?
- Era ele quem me procurava.
- Procurava para saciar suas necessidades de homem. Isso é normal, eles vão com o que acham. Mas você não ia casar com meu filho nunca, não se enxerga?
- Que é que tem?
- Você é uma nigrinha do meio do mato, morta de fome, entregou-se de qualquer jeito feito uma cadela de rua. Você era a diversão dele, serviria no máximo para rapariga. Não viu a moça que casou com ele? Alva, linda, filha do maior comerciante da região. Você se compara?
- A Dona não me trate assim que eu não lhe devo nada, não devo nada a ninguém dessa casa. E também tem é tempo que eu não quero saber de seu filho. A senhora sabe que meu coração já tem dono. E essa foi só mais uma das humilhações que passei nessa casa, mas é a última.
- Deve sim. Quando você chegou aqui era uma imprestável. Não sabia fazer nada. Para trabalhar era criança, para comer era uma onça! Eu ensinei como lavar e engomar uma roupa, a fazer comida a cuidar da casa. Você demorou uns dois anos para dar conta de suas obrigações.
- E a senhora não me pagava um centavo, não tem um ano que a senhora começou a me dar alguma coisa que não dá pra uma feira.
- Você ainda acha pouco? Não basta tudo o que fizemos por você? Aqui você recebeu do bom e do melhor, nunca foi empregada.
- Se eu não sou empregada o que é que eu sou então?
- Você, queridinha, é como se fosse da família.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O anjinho do Vendedor de Sonhos

Era quente a cidade no meio das brabas caatingas. Na terra seca os meninos-buchudos brincávamos de bola ou de fura-pé nas manhas. De repente quem aparecia? Para a nossa alegria, do meio da poeira surgia o Vendedor de Sonhos. Esse era um caboclo de cara rude e de poucos dentes que exibia em gestos tão doces como os sonhos docinhos que vendia.
Quando ele aparecia o jogo parava. Mãinha me dê dez cruzeiros: eu quero comprar um sonho!
Macio como um pedacinho de nuvem com gosto de felicidade de menino. Só unzinho para modo de não dar verme!
Um dia desses o Vendedor de Sonhos não apareceu. Cadê o homem? Hoje ele não ia distribuir sonhos, só lágrimas. 
Foi por causa da filhinha dele que virou anjo. Eita, eita. Juntamo-nos seus fregueses, uma procissão de meninos-buchudos e fomos à casa de nosso benfeitor, longe, pras bandas da rua de cima. Cuidado para não ficar impressionado, mãinha deixou.
Sala apertada. Era gente! Pessoas que adoçam as vidas alheias são queridas muito. As velhas com lenços nas cabeças cantavam cantigas bonitas, e o povo abraçava o Vendedor de Sonhos e uma mulher que eu não conhecia, pelo jeito de certo era a mamãe da menininha.
Num caixãozinho branco De olhinhos fechados, camisola branquinha e cabelinho cacheado jazia a filhinha de nosso amigo. En-ein! Tão bonitinha!  En-ein tão miudinha.
Isso é justo? Um Homem tão bom que só faz alegrar as crianças perder sua filhinha de morte-morrida?
Menino não conteste as vontades de Deus! Foi a avó da anjinha que me ensinou!
Nessas caatingas muitos nascem e poucos vingam. Quis Nosso Senhor que essa menina fosse em boa hora, quem morre antes dos sete tem pecado não, não conhece purgatório, vai direto pro Céu pr'on'ta Papai-do-Céu. Um anjinho que rogará por nós que continuamos nesse mundo cão sofrendo as dores da carne. E os castigos do Cabrunco!
Bom saber. Desculpe minha ignorância.
Abracei o vendedor de sonhos, deixei escorrer uma lágrima na sua camisa surrada e corri pra casa pra ninguém me ver chorando por causa de um anjo que foi para o Céu.