- Eu vi suas trouxas arrumadas lá na cozinha. Posso saber de que se trata?
- Eu vou me embora pra São Paulo mais meu amor e vai ser para a semana.
- Como é que é?
- Isso mesmo, Dona. Semana que vem me pico daqui. Sabe, descobri dia desses que vou ter um menino. Meu amor tem emprego apalavrado em São Paulo, tudo certinho. E isso aqui não é vida para mim mais não.
- Não acredito. Você é uma ingrata mesmo. Ingrata!
- Que?
- Olhe, Fulana, fui em quem acabou de lhe criar. Quando eu lhe trouxe aqui para casa você tinha nove anos. Peguei você na casa de seu pai no meio daquela miséria, quase morta de fome e lhe abriguei em meu lar. Dei comida, dei tudo. Não fosse por mim uma hora dessas você já teria morrido de fome por esse mundo. Mas é assim. Mulher de sua laia não pode ver homem. Do primeiro que achou já arranjou barriga. Nunca deixou de ser gentinha.
- Dona, não me trate desse jeito que não lhe dei ousadia!
- Ousadia? Quem é você para falar em ousadia comigo, sua sirigaita! Pensa que não sei que você e meu menino se atracavam feito bichos do mato quando eu e meu marido íamos dormir. Sempre desfrutável.
- Quer dizer que a Dona sabia e nunca fez nada? Eu era menina-moça , foi ele que foi mexer comigo. Eu tinha onze anos, nem regra eu tinha.
- Você deu o que deu porque quis.
- Ele me adulava com os doces e as comidas boas que só ele podia comer, me prometia que ia fazer um negócio que não doía e eu não podia contar pra ninguém. Eu não sabia nem o que era isso. Ele ia me bolinar lá no meu quartinho.
- Ele era um menino.
- Ele já era de maior, tinha bem uns vinte.
- Você sempre foi oferecida. Ficava limpando o chão de roupinha curta se insinuando.
- Eu não sabia nem o que era aquilo!
- Lembro do tempo que vocês ficavam de segredinhos pela casa? Você olhava para ele com o olhar todo enviesado na hora de servir o jantar.
- Uma hora me apaixonei por ele, quando entendi o que a gente fazia. Já tinha uns quinze anos. Eu quis ele pra mim.
- O que? Você enlouqueceu? Querer meu filho pra você?
- Era ele quem me procurava.
- Procurava para saciar suas necessidades de homem. Isso é normal, eles vão com o que acham. Mas você não ia casar com meu filho nunca, não se enxerga?
- Que é que tem?
- Você é uma nigrinha do meio do mato, morta de fome, entregou-se de qualquer jeito feito uma cadela de rua. Você era a diversão dele, serviria no máximo para rapariga. Não viu a moça que casou com ele? Alva, linda, filha do maior comerciante da região. Você se compara?
- A Dona não me trate assim que eu não lhe devo nada, não devo nada a ninguém dessa casa. E também tem é tempo que eu não quero saber de seu filho. A senhora sabe que meu coração já tem dono. E essa foi só mais uma das humilhações que passei nessa casa, mas é a última.
- Deve sim. Quando você chegou aqui era uma imprestável. Não sabia fazer nada. Para trabalhar era criança, para comer era uma onça! Eu ensinei como lavar e engomar uma roupa, a fazer comida a cuidar da casa. Você demorou uns dois anos para dar conta de suas obrigações.
- E a senhora não me pagava um centavo, não tem um ano que a senhora começou a me dar alguma coisa que não dá pra uma feira.
- Você ainda acha pouco? Não basta tudo o que fizemos por você? Aqui você recebeu do bom e do melhor, nunca foi empregada.
- Se eu não sou empregada o que é que eu sou então?
- Você, queridinha, é como se fosse da família.
2 comentários:
Gerson, parabéns por mais essa crônica.
Aliás, só tem o nome de crônica por não reproduzir o verdadeiro nome de seus personagens, porem sabemos que existem em qualquer parte do mundo, mesmo com a modernidade em que vivemos nos dias de hoje.
Qual de nos nunca viu um pessoa de “carne e osso”, na pessoa deste personagem?
Parabéns primo por mais uma esplêndida criação.
A condição da figura feminina na sociedade atual tem melhorado. A mulher tem tomado consciência do mundo político em que está inserida, mesmo ainda com tantas dificuldades ela vem vencendo o machismo e o preconceito; encurtando cada vez mais a disparidade entre homens e mulheres.
Willian Costa
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