Páginas

domingo, 1 de julho de 2007

Vovô Antônio e a Suçuarana

Meu tataravô Antônio era vaqueiro na Fazenda Juazeiro, situada em Cansanção, não sei exatamente pra que lado.
Como parte de suas atribuições, deu fé da falta de uma ou outra rés no rebanho de dias em dias. Onde estaria parando esse gado?
Provavelmente havia algum ladrão por ali que ainda não identificara! O jeito era atocaiar, ficar em alguma capoeira esperando o danado dar às caras.
Se indumentou com gibão, perneiras, chapéu, armou-se com facão e peixeira, armou seu filho mais velho, José e carregou Borges, ainda menino pequeno com uns seis anos de idade - que era pra modo de aprender ofício!
Quando o sol já ia caindo ouviu-se o mugido de uma rés, um berro, um gemido, como quem pedia socorro. O vaqueiro Antônio atalhou com seu cavalo e viu o assalto!
Mas não tinha homem pegando a rés, era uma danada de uma onça parda grudada no pescoço da bichinha, uma Suçuarana. Borges se segurou nas calças de José, teve medo e chorou, as pernas balançaram, José apertou sua mão.
Antônio pulou do cavalo com o facão na mão, partindo pra riba da bichona!
A onça largou o pescoço da rés e correu na direção de Antônio. Deu o bote! Pulou no pescoço do vaqueiro, mas seu bucho encontrou o facão afiado antes que seus dentes achassem pedaço de carne de gente! Antônio terminou de matar a bicha na unha e a carregou com ajuda dos filhos. Antônio viveu até conhecer seus bisnetos, entre eles Marluce minha mãe. José cresceu, casou, teve filhos mas morreu aos trinta e poucos por conta de uma pneumonia; Borges depois de enxugar as lágrimas e de ter crescido, e de ter casado com Emília - ficou sendo avô de minha mãe, paizinho de todos nós - e ele mesmo me contou essa história, com "H" mesmo que ele não inventa, e até hoje vive em Cansanção na casa de tia Maria.

Getúlio Vargas e o Vô Dudu


Entre o final de década de 1930 e meados da década de 1940, o mundo vivia a segunda guerra mundial, em que o Nazifacismo ameaçou - principalmente a partir do império alemão, a "democracia representativa" ao oeste, e experiência Soviética à leste. O Brasil governado por Getúlio Vargas, através de seu "Estado Novo"- modelo totalitário, que flertava com o nazifacismo de certo.

A crise na produção industrial dos países centrais, envolvidos na guerra, propiciou o desenvolvimento da indústria brasileira de uma maneira que nosso país não experimentara até o momento, principalmente pela substituição das importações, Getúlio ainda vendeu aos Estados Unidos o seu apoio em troca da Companhia Siderúrgica Nacional.

O que meu avô Dudu tem a ver com isso?

Então, provavelmente durante esse período meu bisavô: Bevenuto Piauhy Salvador, conhecido por nós da família como vô Dudu, conheceu São Paulo. O crescimento econômico, e o ensaio de desenvolvimento do Capitalismo brasileiro, recrutou-o assim como a milhões de trabalhadores rurais.

Isso já fica subentendido pelo que já foi dito, e a única função do aparecimento desse meu parente é uma anedota que envolve seu retorno:


A viagem de trem de São Paulo à Bahia durava catorze dias, Dudu e os outros companheiros passavam os dias e noites olhando um para o outro nos vagões, transportados como carga - e de certa maneira, um operário não valia mais do que o conjunto de mercadorias, sua própria força de trabalho era uma mercadoria também.

Enquanto atravessavam os morros do Estado de Minas, Dudu abriu a porta do vagão, pulou e sumiu no meio da mata.

Janu, minha bisavó, chorou sua morte, e vestiu luto, e mandou rezar missas para sua alma.

Um dia estava com sua filha Ermina visitando Seu Belau, das Barrocas, conselheiro espiritual de nossa gente. Seu Belau pegou uma cuia com água e mandou Ermina olhar, e ela desmaiou ao mirar a cuia.

Ela jurou que avistara na água seu pai chegando no terreiro de sua casa, montado em um jegue!

Em menos de uma semana, nove meses após seu desaparecimento no "estado de Minas", seu Dudu apareceu, montado em um jegue, no terreiro de sua casa. Contou que "endoidara" no trem, e ouvira vozes que o mandaram pular.

Esse homem viveu até 1985 gozando de saúde e lucidez, em sua roça na Lagoa do Boi, e eu tive o prazer de tomar-lhe a bença e ir com ele à feira pra ouvir as estórias de seus amigos!

Exportadora de gentes

Não foi nem é "privilégio" dos filhos de Cansanção, nem da Bahia, nem do Nordeste - essa música serve de parábola para a História de muita gente, da esmagadora maioria da Classe Trabalhadora: o camponês que virou operário, e não pode desfrutar do conjunto de "obras" que surgiram de suas mãos.


Cidadão
(Zé Geraldo)

Tá vendo aquele edifício moço,
ajudei a levantar.
Foi um tempo de aflição, era quatro condução,
duas pra ir , duas pra voltar.
Hoje depois dele pronto,
olho pra cima e fico tonto,
mais me chega um cidadão, e me diz desconfiado:
Tu tá ai admirado, ou tá querendo roubar?
Meu domingo está perdido, vou pra casa entristecido,
dá vontade de beber,
e pra aumentar o meu tédio
eu nem posso olhar pro prédio
que eu ajudei a fazer.

Tá vendo aquele colégio moço,
eu também trabalhei lá,
lá eu quase me arrebento,
pus a massa, fiz cimento, ajudei a rebocar.
Minha filha inocente , vem pra mim toda contente:
Pai vou me matricular,
Mas me chega um cidadão:
Criança de pé no chão,
aqui nao pode estudar.

Essa dor doeu mais forte,
por que que eu deixei o norte,
eu me pus a me dizer, la a seca castigava
mas do pouco que eu plantava, tinha direito a comer.

Tá vendo aquela igreja moço,
onde o padre diz amém.
Pus o sino e o badalo,
enchi minha mão de calo,
lá eu trabalhei também.
Lá sim valeu a pena
tem quermese tem novena
e o padre me deixa entrar,
foi la que Cristo me disse:
rapaz deixe de tolice, não se deixe amendrotar.
Fui eu que criou a terra, enchi o rio, fiz a serra ,
não deixei nada faltar,
Hoje o homem criou asas
e na maioria das casas
eu também não posso entrar.

Os principais produtos da terra: a mulher e o homem

O povo de Cansanção se organizou, em sua maioria, em pequenas propriedades onde se praticava agricultura de subsistência e se criava alguns animais - principalmente cabras e ovelhas, bem adaptadas à grande variação de clima. Não houve ali qualquer atividade que possibilitasse a um ou outro uma acumulação importante de capital.
Os produtos da terra: sisal, couros de segunda qualidade, licuri, não encontraram - e não tinham como encontrar, mercados para se tornarem produtos que impulsionassem algum desenvolvimento "capitalista" no local.
Esse caso não é excessão, mas regra em uma parte importante deste país: economia rudimentar, ausência de Estado, população rural, altos índices de natalidade, altas taxas de mortalidade infantil, baixa expectativa de vida... assim, a partir das décadas de 1930 e principalmente 1940, Cansanção passou a fazer parte das localidades que exportaram mão-de-obra barata, para a construção de nosso "Capitalismo tupiniquim".
Era em São Paulo que se ofereciam empregos, era pra São Paulo o rumo dos varões ao completarem dezoito anos!
Muitos são os relatos de pais que adulterarm os registros de seus filhos para que eles pudessem viajar antes para São Paulo.
Com minha família não foi diferente: durante a década de 1950 meu avô Lúcio, alcunhado de Branco, deixou Cansanção e esteve em São Paulo trabalhando na Construção Civil, enquanto a minha avó Nira (falecida recentemente, Deus a tenha em um bom lugar), sua namorada, o aguardava na roça, para casarem. Os ciclos se repetiram, e vêm se repetindo - foi assim com meu pai e minha mãe também. E o caso de minha família serve para ilustrar a história da grande maioria das famílias daquele lugar e de tantos outros com a estrutura social parecida: exportadora de gentes, para serem os braços que ergueram as catedrais, os edifícios, manipularam os tornos, e encheram as periferias das grandes cidades - em situações de vida precárias, mas menos precárias do que as anteriores.

Capítulo dois: quase 61 anos após - o Município.

Nas décadas seguintes Cansanção se desenvolveu como um local privilegiado para comércio já que se localiza entre três cidades mais antigas, e integra o caminho do Sertão para a Capital e esse com a estrada para Senhor do Bonfim e Juazeiro. Além disso vários núcleos familiares se fixaram ali, principalmente explorando a pecuária e agricultura de subsistência. De certa maneira foi rápido o crescimento daquela localidade, e a nascente elite política local em meados da década de 1950 procurou um caminho para desligá-la do município de Monte Santo. Em 1958 veio a emancipação, no dia 11 de agosto - dia fácil para eu lembrar: o mesmo em que nasceu meu pai! Não sei discorrer sobre a conjuntura local naquele momento, ficaram os nomes: de João Andrade, que foi o primeiro prefeito da cidade, e seu Marinho, que foi provavelmente o segundo prefeito, como "os emancipadores". Os conterrâneos que tiverem mais e melhores informações por favor colaborem com comentários.

Começando... pelo começo!

MISSA em Cansanção (Bahia), por Flávio de Barros, 5 set. 1897. (Museu da República). Reprod. de Antônio Olavo.
retirada de www.euclides.site.br.com


Cansanção, muito antes de ser nome de lugar, é nome de uma planta da caatinga, urticosa, que queima a pele de mateiros distraídos.

Não conheço o motivo, mas em meados do século dezenove (XIX), um homem chamado Luís Gomes Buraqueira, resolveu se estabelescer em um pedaço de chão no sertão da Bahia, junto a seus parentes e aderentes, e deu-lhe esse mesmo nome : Cansanção. Segundo Euclides da Cunha em seu "Os Sertões", tratava-se de uma terra bastante fértil - e provavelmente fosse mesmo, já que não havia ali tão próximo algum rego d'água que sustentasse uma população maior por muito tempo.

Esse Gomes Buraqueira, bisavô de minha tataravó Rita, foi descrito por Euclides da Cunha como um homem hígido e lúcido aos "oitenta anos bem contados". Esse fica sendo o patriarca de Cansanção. Já pensei quando era garoto em escrever-lhe uma elegia mas desisti prontamente no dia em que soube que ele recebeu em sua casa, com uma missa, os soldados que destruíram Canudos, e que ainda lhes forneceu víveres! Fosse eu estaria do lado dos sertanejos de Canudos e receberia o Exército à bala! Provavelmente um descendente meu hoje não pudesse compor esse Blog.