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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Eu Cansanção

Flor de Cansanção
Foto de Gerson Salvador, 2013.
sou riobaldo
sou fabiano
no meu lado esquerdo
sou sertão
sendo um graciliano tão joão
compartilho meus medos
e paixão
urtiga que arde
nos couros do gibão
no meu velado sou cavalo-do-cão
um cabra com peixeira amolada
de amolecer e cortar
o coração
em minhas crostas abrem-se
veredas tão estradas
onde travam as rodas na arruinação
de ser cosmopolita e beber águas
doces e barrentas
do mundo de (quem sabe?) Cansanção

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Umbuzeiro

Foto: Umbuzeiro 
Gerson Salvador
Riacho Alegre, Cansanção.
Outubro de 2013
durante uma prolongada jornada
por grandes sertões: veredas
encontraram um umbuzeiro
no meio de uma capoeira
limparam o terreiro e ergueram uma casa
com as areias que havia na terra

plantaram uma roça e uma família
cresceram três gerações
que comeram os frutos da árvore
se amaram e se balançaram nela
descansaram em sua sombra
e mataram a sede com suas raízes
nas piores secas

mas aquele jeito de viver
compartilhando sonhos e decifrando estrelas
não caberia em tardes
de outubros contemporâneos

abandonaram a terra
as gentes se findaram
a casa ruiu
restaram os escombros
a capoeira se restituiu
permaneceu o invulnerável perene e solitário
umbuzeiro.

Esse poema é de 14 de outubro de 2013

domingo, 12 de janeiro de 2014

Moças de família



Vincent Van Gogh
"Old Woman of Arles" 1888
                    

             Valei-me Nosso Senhor das bramuras do excumungado. Não vou aguentar de novo as mesmas tentações depois de quase vinte anos.
            O Senhor que temo tanto e me conhece demais deve estar providenciando um castigo pelo tempo em que não fui tão casta. Crendeuspai.
            Sabe que quando eu era moça me engrecei por homem casado, bonito que só ele, tão galante, bico tão doce. Na flor da juventude me fiz conhecer. Foi pelas quenturas das carnes que me descobri para ele no meio da roça de melancias, ali toda formosa, eu quente, na areia quente, ele quente. Era flor, fui deflorada. Doeu e foi a dor melhor que senti, eita.
            Não demorou muitos encontros: a regra sumiu, o peito inchou e eu comecei a vomitar, dava gastura de sentir o cheiro do de-comer. Que era aquilo? Isso mesmo. Eu já tava prenha. Antes que pai descobrisse e me matasse e matasse ele, peguei o primeiro pau-de-arara e parei nessa cidade de gente tão esquisita.
            A minha sorte foi logo encontrar Clemente, tão cristão, me acolheu. Aceitou meus defeitos, mexida e embuchada. Casou comigo e registrou Maria, como fosse filha de sete meses. O Senhor, na sua bondade me acolheu também. Na igreja que frequentávamos éramos uma família perfeita, com as graças de nosso pai. Fiquei sendo catequista e ensinei o melhor da moral para muitas crianças, as mulheres de boas famílias me recebiam para chás e conselhos.
            Clemente me satisfazia o coração mas não dava conta de meus calores, esses eu deixei que se apagassem, isso não era coisa de mulher direita, ficaram na roça enterrados com aquela cabrita despivitada que eu fui um dia. Hoje minha vida era outra, eu outra mulher, de família, admirada, exemplar.
            Maria cresceu, foi à escola, arranjou trabalho. Eu mesmo era a favor de arranjar um casamento para ela logo que ficou moça, mas Clemente tinha as aspirações de ver a filha formada. Orgulhos de gente besta. Pobre não pode ser dar a esses luxos. E eu sabia que fêmea não é para andar no meio de machos. Veja que até o escorpião e a escorpioa com tanto ferrão e tanto veneno dão seus jeitos para se atracarem.
            Dito e feito. Maria apareceu buchuda. Fiquei desesperada. Por essas tentações ferinas, esse pai mole que arranjei que não lhe botou nos prumos. Maria prenha. Quem era o pai? Maria não dizia. Ou era casado, ou ela não sabia, tinha manias de ir a bailes em salões do mundo, coisas que só prestam para satisfazer o Tinhoso.
            Ela não ia por a perder tudo o que eu tinha. Como minhas amigas da igreja iam me encarar se soubessem que minha filha era mãe solteira? Como?
            Dei-lhe uma surra de reio que ficou toda marcada, ou bem lhe concertava ou eu acabava de entortar. Avisei no trabalho que ela estava demitida, avisei na escola que ela estava desmatriculada. Tranquei ela no quarto dos fundos, não lhe faltaram água nem comida.
            O senhor sabe, Meu Pai, que fui boa mãe e boa esposa, era só isso que estava ao meu alcance. Como ia lhe deixar fazer pré-natal? Vissem aquela barriguda desfilando até o Posto de Saúde, como ficava minha reputação? Logo eu que ensino a moral às famílias?
            Passadas muitas semanas um dia ela passou mal, disse que estava ruim, morrendo, sei lá, esperamos anoitecer para modo de não dar na cara para os vizinhos e a levamos ao hospital.
            Lá um menino parecido com esses que soltam pipa aí na rua se apresentou como médico, disse que era Doutor Fulano de Tal e que ela estava muito grave, que a pressão estava baixa, que ela teve hemorragia, que já iam fazer o parto, mas que corria risco de vida.
            Me assustei, me apeguei com o Senhor, me abracei à minha Bíblia e fui ao seu encontro. Lá ela estava, branca feito um papel, camisola manchada aos vermelhos, gemente. Pediu para eu chegar perto. E me disse... nos seus delírios de fim de vida, teve coragem de dizer que o nenê que ia ganhar era de Clemente! Pai tão bondoso que ela teve. Clemente não me bastava e ia procurar uma menina dessas sem graças e sem sal? Era minha filha mas não aguentei, xinguei: cachorra, mentirosa, descarada. Virei as costas. Saí da sala. Ouvi choros. Ouvi gemidos. Vi o menino médico sair da sala de operação, cheio de sangue na roupa. Disse assim mesmo: fizemos tudo o que estava ao nosso alcance, mas sua filha morreu, está aqui sua neta.
            Chorei triste, magoada com a perda de minha filha, mas também por seus destinos, deitou com qualquer, não preservou nossa família e na hora da morte ainda tentou me jogar contra Clemente. Acho que ela queria me ver infeliz. Resisti com as forças que achei em nome do Pai, não morri naquela hora.
            Agora meu desgosto maior é que alimentei essa criatura, minha neta, essa trouxe desde cedo para aprender a palavra, essa nunca deixei andar com gente que não presta, dei do bom e do melhor. Agora está aí no mundo, mexendo com tudo que não presta: bebe, fuma, usa porcarias, cada dia aparece com um macho diferente. Meu pai, me conforta, isso não é certo. Que eu fiz para merecer uma cruz como esta?